Começo a ler a tese de
Christopher Beckwith de que o pirronismo tem estreitíssimas relações com o
budismo (Greek Buddha). Em princípio, gosto de julgar que é verdade. Gosto inclusive de crer
que os filósofos antigos empreendiam jornadas com o objetivo exato de realizar
esse tipo de intercâmbio, e gosto de pensar que as civilizações antigas eram
bem menos isoladas em seus aspectos intelectuais do que se pensa, de forma que
essas viagens eram não só comuns como eram o próprio movimento de respiração
das culturas antigas.
Não afirmo que é fato no caso do
fundador histórico, e um tanto mítico, do ceticismo ocidental, nem até que
ponto Pirro absorveu o budismo antigo em sua doutrina: deixo a polêmica aos
mais eruditos, aplicados e competentes. O fato é que há aí, ainda que em
modestos e precários registros, o suficiente para reconhecer, ao menos
estruturalmente, uma inegável irmandade de caminho, que eu vou chamar aqui de
caminho dos perplexos.
Em postagem anterior escrevi um
pouco sobre o caminho da ‘busca da desonra’ dos cínicos. Faço essas postagens
como singela menção honrosa, nota mnemônica jogada no espaço virtual, porque
entendo que toda escola filosófica solidamente constituída é, de certa forma, devoção a um aspecto da divindade, que é em si mesma inesgotável. Vendo assim, entendo que até céticos e niilistas participam da
grande devoção (voluntária e involuntária) que todos prestam ao princípio
inefável de todas as coisas.
O Buda, é só o que se fala por aí, se
recusou a responder questões teológicas e metafísicas – o budismo não quer
lidar, ainda que escorregue no seu voto às vezes, com categorias conceituais
como Deus, mundo, alma, eu. Narram que o príncipe xátria ensinou que ‘todos os
dharmas são anitya (impermanentes), todos os dharmas são duhkha (instáveis,
segundo Beckwit), todos os dharmas são anâtman (sem uma identidade ou si mesmo
inato). Ora, curioso - dizem que Pirro de Élis, o objeto dessa postagem, afirma a respeito dos ‘pragmata’ que ‘todos
são diaphora (indiferenciados), são astathmêta (instáveis) e anepikrita (não
fixados).
Beckwith observa que o termo
pragma significa ‘algo, coisas’, mas tem o sentido abstrato de ‘objeto de
cogitação ou disputa’ (além de alguns outros, confiram na obra), mas que a
ênfase deveria ser coloca nas disputas entre diversas escolas. Plutarco usa o
termo da seguinte forma:‘eles discutem sobre se o pragma é bom ou mal, ou preto ou branco’. Pirro teria assim preocupações, não
metafísicas, mas éticas (pragmas), de forma que o termo toma um sentido
parecido com o de dharma, em um dos significados acentuados pelas tradições budistas.
O caminho cético de Pirro, como
muitos outros da antiguidade, qual
indicado pela tese de Hadot, é um
caminho espiritual. E assim, as três características dos pragmata apresentam,
no fim das contas, a estrutura fundamental usada pelo cético na busca da ‘apatheia’
seguida pela ataraxia, que seria o fim último do ceticismo pirrônico (e que o
autor do livro aqui comentado compara com nirvana, o que, creio eu, é
exagero, mas reiteiro, sejam céticos, confiram lá a obra. É boa.).
Beckwith faz ainda interessante
observação sobre o desleixo na tradução clássica do termo duhkha. Ainda que no
budismo atual o termo tenha sido traduzido, celebrado e entendido como
sofrimento, puro e simples, e com todas as conotações que carrega na mente popular, há´evidências etimológicas que colocam dúvidas sobre se era assim
mesmo no budismo antigo.
Monnier-Williams, talvez a mais notória referência ocidental quando se fala do sânscrito, propõe que o termo duhkha seja derivação ou adaptação prakrítica de duh-stha, que por sua vez é um composto com a raiz stha (origem do estar, stand); o mesmo ocorre com sukha, oposto de duhkha, que derivaria de suh-stha, cuja tradução seria algo como 'ter um bom eixo de rotação', como a roda de uma carruagem que corre livremente por estar num eixo firme. Assim duh-stha seria mais apropriadamente ‘instável’ o que é exatamente o significado do astathmêta de Pirro, e suh-stha, estável (ao redor de um eixo), e não dor e prazer como se quer nas traduções correntes. Assim, dá para dizer que o ceticismo, tanto no caso do budismo como do pirronismo, quer que nos sustentemos no eixo das coisas sem aderir internamente a nenhum ponto de vista: estáveis, sem movimento interno, em perfeita tranquilidade, indiferentes a todas as disputas.
Monnier-Williams, talvez a mais notória referência ocidental quando se fala do sânscrito, propõe que o termo duhkha seja derivação ou adaptação prakrítica de duh-stha, que por sua vez é um composto com a raiz stha (origem do estar, stand); o mesmo ocorre com sukha, oposto de duhkha, que derivaria de suh-stha, cuja tradução seria algo como 'ter um bom eixo de rotação', como a roda de uma carruagem que corre livremente por estar num eixo firme. Assim duh-stha seria mais apropriadamente ‘instável’ o que é exatamente o significado do astathmêta de Pirro, e suh-stha, estável (ao redor de um eixo), e não dor e prazer como se quer nas traduções correntes. Assim, dá para dizer que o ceticismo, tanto no caso do budismo como do pirronismo, quer que nos sustentemos no eixo das coisas sem aderir internamente a nenhum ponto de vista: estáveis, sem movimento interno, em perfeita tranquilidade, indiferentes a todas as disputas.
Aliás, é necessário notar também, antes de seguir adiante e antes que me esqueça: o famoso tetralemma usado por Nagarjuna, aparece também entre os
céticos gregos, e era desconhecido em todas as outras escolas gregas, então a coisa nos deixa pensando...
E caímos no Diógenes Laércio,
fonte incontornável: ele diz que Pirro, que acompanhou Alexandre em
suas viagens, de fato se encontrou com os famosos magos persas, e também com os tão
falados gimnosofistas, chamados às vezes de shramanas; e foi justo a admoestação de um
desses ascetas que levou Pirro à vida espiritual. A coisa ocorreu assim: parece que o nosso filósofo escrevera um poema louvando Alexandre, o que lhe rendeu dinheiro e algum
reconhecimento. Em determinado ocasião ouviu um dos tais gimnosofistas censurar
seu próprio mestre Anaxarco por se vender aos reis e aos palácios, e parece que
a carapuça lhe serviu e ele tomou a repreensão para
si de tal forma dolorosa que se retirou da vida social e foi viver em
solidão.
Aparece em outras narrativas, retratando-o de certo sua idade avançada, considerado como santo pelos
seus compatriotas, sendo inclusive liberado de pagar impostos em sua cidade. Não
faltam as anedotas que o tipificam às vezes como um
sujeito bem estranho. Tem a história de que permaneceu tranquilo quando todos desesperavam no navio, com a chegada da tempestade -- notando ali um
porco que continuava comendo sem se importar com o temporal, apontou a ‘apatheia’
do animal como modelo. Em outra história, meio difícil de encaixar em qualquer
esquema, foi visto correndo amedrontado de um cachorro (chegou a subir em uma árvore, dizem). Ao ser questionado sobre tal reação pouco
filosófica, respondeu que ‘não era fácil se livrar de toda a natureza
humana’. Antígono de Caristo dizia que se comportava como um louco, andando a
esmo, se colocando em perigo, tentando se jogar de precipícios, sem distinguir entre o que era bom e mau (o que me parece mais uma personificação anedótica do que realidade), e o imortal Aristóteles, belicoso e astuto, confirma em sua metafísica que essa é mesmo a atitude de
alguém que nega o princípio da não-contradição (o que um cético poderia achar injusto, pois Pirro não negava ou afirmava nada)
E não é só no budismo ou no
ceticismo que a perplexidade ou a suspensão do julgamento é um caminho (ou uma paragem?): de fato, em toda escola mística a adoção de
um ponto de vista (darshana) é que é algo temporário, uma espécie de sâdhana ou
prática preparatória para coisas mais profundas. Parece que muitos hoje tomam
as doutrinas como elaborações lógicas ou sistemáticas definitivas, e, aliás, é nesse sentido que o trabalho do supracitado Hadot (que talvez eu resenhe no futuro), tenha surgido, e recentemente
se popularizado, como remédio eficaz para esse tipo particular de ignorância
das classes intelectuais.
Como terminar essa postagem sem
fazer aqui menção a tantos outros perplexos diante do não-saber luminoso?
Plotino em suas Enéadas titubeando e se enrolando diante da definição do Uno, e
Dionísio Areopagita diante da treva luminosa, ou o não-saber em Nicolau de
Cusa, em Mestre Eckhart ou no anônimo do clássico medieval Nuvem do Não-Saber? Lembramos
também o fértil uso do paradoxo na tradição zen ou nas histórias Mula Nasrudin.
Como ignorar a prática da ‘destruição
mental’ (manonasha) dos vedânticos, ou os livros religiosos tardios dos sikhs dizendo que
todos louvam o Absoluto com qualquer filosofia ou até com xingamentos e impropérios?
Os céticos são um espinho, sempre
nos lembrando da inanidade dos projetos conceituais humanos, e apontam sempre
que as modestas aquisições que temos nesse setor, quando cooptadas pelo orgulho
e pelo ego acabam sendo sempre pequenas repetições da Torres de Babel em cada
indivíduo, cada geração, cada cultura.
Deve o homem desesperar diante do
não-saber? Não. Se Diógenes toma um cão por mestre, Pirro toma até mesmo um porco. A
tempestade passará. A lição cética é também a de tranquilidade; a caravana de Pirro não é de desepero - não devemos confiar demais na capacidade racional e discursiva.
A ataraxia que os cínicos obtinham pelo desapego à opinião alheia, os céticos
obtinham pela suspensão do apego à mente discursiva em suas pretensões absolutistas: através de um corredor espelhado de indução de perplexidade o cético permanecia impassível e
tranquilo. Permaneciam no eixo das coisas, dentro daquele
instante indizível entre o sonho e o estado de vigília, o segundo anterior ao
nascer ou por do sol no simbolismo tradicional. E quase ia me esquecendo, mas a
imagem que encabeça essa postagem é da deusa Baglamukhi cortando a língua do linguarudo; inspiração que
nos vem naturalmente ao contemplarmos o tema, e que dispensa explicações.