Wednesday, January 10, 2018

As três flechas da batalha humana

A sabedoria tradicional vedântica explica que a ação pode ser entendida em três planos. Para captar isso o mais importante é compreender primeiro que a ação humana, em função de sua liberdade específica, tem a possibilidade de, por assim dizer, alterar o equilíbrio da totalidade, exigindo em seguida uma reparação da ordem: 'criando destinos' e gerando resultados.

A ilustração tradicional, tomando o ponto de vista do indivíduo que age no campo de batalha, usa a figura do arqueiro, seu arco, suas flechas e o alvo. Há flechas que ainda não foram atiradas, há flechas que estão nesse momento à mão para serem atiradas, e há as flechas que já foram atiradas (e estão no ar em direção ao alvo). A flecha que está em nossa mão nesse momento representa uma possibilidade frustrável, pode-se atirá-la ou não, e com isso, gerar novos resultados, isso é chamado na doutrina hindu de agami-karma. As flechas que estão na aljava são o samchita-karma, ações acumuladas, marcas (samskaras), sementes internas que, em algum momento se tornarão agami-karma e terão de ser ou lançadas, ou destruídas. A flecha uma vez lançada foge a todo controle e seus efeitos serão experimentados necessariamente, e esse é o chamado prârabhda-karma.

Fabre d'Olivet, em seu maravilhoso comentário dos Versos Áureos de Pitágoras, ainda que tomando-a desde um ângulo macrocósmico, expõe exatamente a mesma doutrina dos três planos da ação: o Destino é representado pelo homem material e pela natureza (incluindo aí a sociedade), a liberdade é a Vontade humana, e a Providência é a sujeição, desde a eternidade, da Vontade humana. Comparando essa doutrina, de inspiração pitagórica, com a dos estoicos, d'Olivet chega à seguinte conclusão:
"A confusão de palavras só podia produzir, e de fato produziu, entre os estoicos, uma inversão de ideias que foi um resultado muito infeliz; pois, como eles estabeleceram, de acordo com seu sistema, uma cadeia de bem e mal que nada poderia romper ou alterar, poder-se-ia facilmente inferir que, estando o Universo sujeito à atração da fatalidade cega, todas as ações estão aqui necessariamente determinadas antecipadamente, forçadas, e portanto em si mesmas indiferentes; de forma que o bem o e  mal, a virtude e o vício, são palavras vãs, coisas cuja existência é puramente ideal e relativa."
Ele inclui em sua crítica ainda os platonistas (ainda que não critique Platão) por adotarem a interpretação que se tornaria comum entre diversas seitas gnósticas, e que consiste no erro de confundir a Providência com a Vontade:
"O grande erro dos platonistas, exatamente contrário ao dos estoicos, foi confundir o poder da Vontade com o da Providência, e tendo instituído este último como princípio do bem foram colocados na posição de manter que há duas almas no mundo, uma beneficente, Deus, e uma maléfica, a Matéria. Esse sistema, aprovado por muitos homens celebrados na antiguidade [...] oferece, como eu observei, a grande desvantagem de dar ao Mal uma existência necessária, quer dizer, uma existência independente e eterna." 
Aliás, é bom acrescentar que nas escrituras hindus nem os animais, nem os devas têm à sua disposição o agami-karma, o que mostra que o aspecto dinâmico do equilíbrio/desequilíbrio da totalidade cósmica está justo na mão dos humanos, e daí sua posição axial na ordem das coisas. Tendo compreendido isso, e entendendo também a polissemia do termo karma, fica fácil captar o seguinte trecho do Gîtâ:

Devân bhâvayatanena
Te devâ bhâvayantu vah
Parasparam bhâvayantah
Shreyah param avâpsyatha

(Por esse sacrifício) que tu possas alimentar os devas
Que os devas possam alimentar-te,
Alimentando-vos uns aos outros, 
Obtereis (devas e homens) o bem supremo.

BG, III -11

Aqui o termo 'bhâva' é crucial. Ele pode significar tanto 'existência', 'vir-a-ser', como 'nutrir', no sentido de 'dar a vida' ou 'alimentar'. Daí que a tradução pode contemplar até mesmo a reciprocidade ontológica, no sentido de 'gerarem-se mutuamente'.

O filósofo Mário Ferreira dos Santos, fazendo bom uso dos mitos dados por Platão em seu Protágoras, não deixou de tangenciar a questão, criando a distinção dinâmica entre possibilidades epimeteicas e prometeicas -- essas entregando o fogo na mão dos humanos, aquelas representando o Destino, o prârabhda-karma que não pode ser mais modificado. O agora, que é experimentado como presença simultânea e absoluta no campo metafísico da Providência, é dado no campo da ação humana interseccionado por  muitos vetores: é o futuro possível, sem deixar de ser livre-arbítrio presente, e condicionamento do passado inalterável.  

Isso cria uma notável distinção, no campo conceitual ao menos, entre a ação desapegada praticada por estoicos, por exemplo, e o karma-yoga preconizado no Bhagavad Gîtâ: os estoicos grecorromanos, se fossem seguir as consequências lógicas de suas doutrinas (e em geral não seguem, e nisso são positivos), praticariam o desapego tanto quanto ao Destino como quanto à Providência, uma vez que, em última instância eles compreendem que ambas são a mesma coisa.

Portanto, não é exagero dizer que qualquer doutrina que falhe em dar conta das relações entre Providência, a Vontade e o Destino, acaba fracassando em vários outros pontos necessariamente, e impede assim a compreensão da articulação prakrítica da situação humana (rajásica) em relação a seus complementares tamásicos (mundo da natureza) e sáttvicos (mundo divino).