Friday, February 16, 2018

O homem e a mulher universais


"Ó Shiva, até mesmo Tu, só praticas teu ascetismo como o yogue porque tens a vitalidade necessária para fazê-lo. Essa energia, meu senhor, é a Prakriti. A Mulher é a Prakriti: a causa da criação, nutrição e destruição. Sem a Prakriti como é que o grande Senhor do lingam existiria e seria adorado?" [...] Respondi, "Eu destruo minha Prakriti com ascetismo, Eu estou além da Prakriti". [...] Ela riu, e Eu estremeci ao ouvir o som caloroso, tilintante de Sua voz. Ela respondeu "Ó, yogue, se Tu estás mesmo além da Prakriti, como é que estás aqui nessa montanha praticando ascetismo? Foste engolido completamente pela Prakrti, e de tal forma, que nem percebes tua própria condição? Ó Shiva, se estás além da Prakriti, por que esse medo de que eu me aproxime de Ti?"
(Trecho do Shiva Purâna, versão resumida de Ramesh Menon)
Os shaivas, shaktas e âgamis hindus, que alguns chamam de tântricos,  entendem a totalidade, com poucas variações conceituais ou terminológicas, a partir de três pontos - Shiva, Shakti, Nara. 

O fundamento último de tudo, segundo os sábios que adotam esse ponto de vista é chamado de svâtantrya, que indica a independência e liberdade absoluta e exclusiva do Supremo. É essa liberdade que dá origem à própria divisão entre Shiva, o conhecedor (jñâta), e Shakti, os poderes do conhecedor, ou conhecimento (jñâna).

Daria para abordar isso desde muitos pontos de vista. Como esse blog é dedicado a dar informações básicas, dentro do possível, não quero entrar em discussões técnicas complexas (mas que há, há). Vale dizer que o trecho acima, uma conversa entre Shiva e Shakti, é bastante ilustrativo e nos fará aqui visualizar bem melhor a dimensão apontada do que as doutrinas.

O que havia ocorrido antes, na história do Purâna, para dar uma noção bem sucinta dos pontos fundamentais, foi o seguinte:

Sati, encarnação de Shakti, havia conquistado a atenção e afeto de Rudra por meio de ascetismo que realizou. Chamamos aqui de Rudra àquele yogue que vemos nas figuras com tridente, distinguindo-o de propósito, aqui nesse trecho, de Shiva que, no fim das contas, não é adorado com nenhuma forma, pois é aguna, sem qualidades, e só pode ser representado por um lingam ou uma pedra negra . Na conhecida história (ainda que eu não a tenha contado aqui, o que posso remediar no futuro), Sati havia se jogado no fogo sacrificial, por não suportar ver seu esposo sendo desprezado pelos círculo dos brâmanes, cujo representante maior era seu pai, Daksha.

Tomando conhecimento disso,  Shiva (ou Rudra) manifesta Virabadhra, sua forma furiosa, e corta a cabeça de Daksha (e depois que se acalma dá-lhe uma nova cabeça, de bode). No fim das contas, o Mahadeva (outro nome para Shiva) retorna sozinho para meditar nas montanhas, onde a dor pela morte de sua amada vai se atenuando na medida em que ele se absorve em samadhi (concentração espiritual), se esquecendo do mundo. 

Contudo, após alguns anos divinos (cuja contagem é sempre misteriosa) Sati renasce na forma de Uma, filha de Himavan, e o destino vai unir Shiva e Shakti novamente. No fim das contas, a moça, acaba indo visitar o Shankara (outro nome de Shiva) com seu pai, o senhor dos Himalaias, que foi prestar-lhe reverência quando o Pashupata (outro nome de Shiva) passava pelas montanhas. Shiva permaneceu ali por alguns dias, e a moça tornou-se devota aos pés de yogue, indo todos os dias visitá-lo, e tentando atrair sua atenção com seu charme feminino. Mas ele lhe é indiferente, e de início a rejeita algumas vezes. É nesse contexto que ocorre a conversa acima. 

Uma das possíveis compreensões do trecho é que o homem espiritual, que obviamente tem um corpo, não pode escapar por completo da ação, e muitas vezes nem da paixão. Ele está cercado da ação e reação, e seu princípio vital, sua respiração mesma é ação. No fim das contas, pensar o contrário disso é uma ilusão espiritual. É a própria Shakti rejeitando a si mesma, um diálogo de poderes e existências e não de contemplações.

Alguns, acostumados a aplicar o simbolismo do masculino e feminino a outros níveis,  também legítimos, poderiam entender que o Rudra é que deveria representar a ação, e Uma a passividade. O ponto de vista de algumas escolas filosóficas diria que a Prakrti, identificada à matéria, é sempre passiva, pois é inconsciente, e o Purusha (Homem) é o princípio ativo, pois é inteligência e consciência. Esse é um ponto de vista aplicável em seu plano restrito. Contudo esse ponto de vista não oferece esperança ao homem (Nara, o terceiro elemento), que começa a ver na manifestação universal, 'útero' dentro do qual ele existe, mera negação do transcendente, só para dar um exemplo de problema.

A Shakti é então, de certa forma, aquilo pelo qual Shiva manifesta o mundo e também aquilo pelo qual ele se manifesta no mundo. No Veda temos a noção de que Shakti é a palavra, conhecida como Shabda-Brahman, e nos âgamas diz-se que o indivíduo é o Bindu, o ponto de coagulação da consciência divina. Alguns mais atentos observariam com razão -- mas se a Prakrti é a inconsciência, como pode ser o veículo da consciência absoluta? E é esse justamente o ponto. Esse mistério levou algumas escolas filosóficas a falar que a natureza da Shakti é inefável (anirvacanîya), levou outros a fazer a divisão entre iluminação (prakasha) e reflexão (vimarsha), e ainda outros mais a discutir indefinidamente sobre karma (ação) e jñâna (conhecimento).

Aliás, se quisermos, para ficar mais ao gosto e ao jeito do blog, daria aqui para achar talvez até mesmo um eco da Díade platônica, que apresenta a mesma natureza ambígua: a processão do Nôus ou Intelecto divino (jñâna) só se dá pelo contexto da Díade, pois o Uno em si mesmo não tem razão intrínseca ou compulsão para se externalizar

A coisa mereceria bem mais atenção doutrinal, o que não dá para fazer aqui ainda. Muitas escolas de pensamento hindu, e inclusive o Bhagavad Gîtâ ensinam coisas muito interessantes como a divisão das duas Prakritis -- uma superior e outra inferior. Há muito o que dizer. Mas me contento por agora apenas em tangenciar o tema. Ah, sim. No fim das contas, Shiva, o asceta, se apaixona pela Shakti, e desce mais uma vez de seu transe yóguico para interagir com o mundo, e para revelar doutrinas espirituais para o benefício dos indivíduos (Nara). E aí se desenrola a memória ancestral.