Monday, February 19, 2018

A emissão do som absoluto

Uma das diferenças intransponíveis entre o pensamento cristão, criacionista, e o hindu está no que diz respeito à natureza do tempo e à origem do universo. 

Os hindus, em todas as suas escolas de pensamento, e até mesmo entre os nâstikas, chamados não-ortodoxos, entendem que o universo não tem um ponto inicial de criação.

Os filósofos vaisheshika, que se dedicaram mais à cosmologia analítica, explicam que o que tem início no tempo, por assim dizer, são as composições químicas dos átomos do elemento terra (uma vez que essas composições não ocorrem nos elementos água, fogo, ar). 

Mas o que isso implica? Basicamente, o universo passa indefinidamente por três fases: srishti, sthiti e laya. É importante manter a compreensão de que essas três fases, desde a perspectiva cosmológica, não anulam o tempo (kâla), nem o espaço (âkâsha), nem posição (dik), nem a chamada inerência (samânya), nem as espécies, gêneros e nomes universais (jâti), nem a individuação (vishesha).

É necessário também analisar os termos em sânscrito, que é língua muito rigorosa na etimologia: em geral traduzem srishti por 'criação', mas é uma tradução ruim. O termo vem da raíz 'srij' que indica em seus significados mais fortes -- emitir, lançar, largar, pronunciar um som. Então, basicamente, ainda usando o modo de explicação dos vaisheshikas, a vontade divina 'emite', digamos, um som, e esse som ou sopro, 'toma corpo' dentro do espaço e do tempo, se mantém, e se dissolve. O segundo verbo, stithi, deriva da raiz 'sthâ', que é a raiz indo-europeia de verbos como stay e estar, ou seja, nessa segunda fase o universo sustenta a si mesmo em seu próprio eixo. A terceira fase, chamada de laya, que deriva da raiz 'lî', indica dissolução, derretimento ou queda (ou seja, perda da posição vertical).

Sem entrar aqui na discussão escolástica entre eternidade e eviternidade, entendamos por eterno aquilo que persiste indefinidamente no tempo. Alguns poderiam ainda perguntar: mas se o universo se dissolve, por que é chamado de eterno (no sentido explicado)?  As escrituras apontam que é como o sono, em que o sujeito continua respirando e 'retoma' suas atividades no dia seguinte. 

Os vaisheshikas ensinam que durante a dissolução ou 'noite cósmica' os átomos continuam tendo algum tipo de vibração ou agitação que marca o tempo, sem dimensão, e sem se combinarem de forma inteligente (pois o karma não está operante) -- ou seja uma espécie de caos. Da mesma forma o adrishta (destino invisível) também permanece dormente até ser desperto no momento apropriado. 

Ao término da dissolução, quando chega o momento oportuno para despertar o dia cósmico, esses átomos se combinam novamente segundo três vetores simultâneos: a vontade divina (providência), o destino ou adrishta e os desejos ou tendências (samskâras) das almas individuais.

Assim, o karma que cria os renascimentos é, cosmologicamente, sem começo e sem fim. E isso pode ser chamado de ciclo do samsâra. Poderia aí também surgir mais uma pergunta -- se o karma é sem começo e sem fim, como é possível a libertação? 

O ponto de vista cosmológico, que opera com a constância de categorias de sat (ser, verdade) tais quais os já citados kâla, âkâsha, manas, dik etc., não tem autoridade para deliberar sobre a conjunção inicial entre espírito (âtmâ) e mente (manas), ou seja o 'momento' de penetração do âtmâ no tempo e espaço. E é digno de nota que dentre os perenialistas somente Évola, ao falar sobre o tema do renascimento (abordado em postagens anteriores), mostra consciência mais aguda disso, ao mencionar a 'autodeterminação' do âtma ao entrar no fluxo cósmico.

Para esse ponto de vista cosmológico, a consciência é apenas 'cetana', ela se dá pelo contato entre o espírito (onipresente) e a mente (atômica), e não 'caitanya' (consciência que ilumina a si mesma). Daí que a libertação, para os cosmologistas, acaba sendo uma reabsorção do jivâtmâ no 'sat' (ignorando Cit e Ânanda). Pela compreensão (jñâna) do 'mapa do samsâra', o Âtmâ, realizando e transcendendo as categorias cosmológicas e por oposição cognitiva, é 'perdido de vista' em relação ao cosmos, se libertando dessa esfera. Aqui os cosmologistas têm dificuldade de diferenciar isso de a inconsciência de uma pedra, por exemplo, ainda que entendam que são casos obviamente diferentes. Se seguirem a ortodoxia, 'passam a bola' para outros pontos de vista.

Quando passamos ao ponto de vista cosmológico sintético do samkhya, vemos que aquilo que entre os vaisheshikas é conjunção, passa a ser uma disjunção: o Purusha nunca se conjuga de fato com a Prakrti -- permanece sempre distinto em sua própria inteligência, de maneira que a mente passa a ser não a representação da consciência, mas da inconsciência ou matéria.

Nos pontos de vista superiores, vedânticos ou agâmicos, vamos entender, como explicará os Shiva Sûtras em seu primeiro verso, que 'caitanyamâtmâ' -- a consciência suprema, perfeitamente livre, e que ilumina a si mesma, não é dada pela conjunção entre sentidos, mente e espírito em estado de vigília, mas é a própria natureza última do Si Mesmo.

Seria preciso falar um pouco da natureza do espaço e do som, mas vale dizer aqui que há entre os três estados de manifestação uma analogia patente tanto com o mantra AUM (ainda que o simbolismo não seja esgotado nesse nível) como com os 3 estados de consciência individual (vigília, sonho, sono profundo):
Aum ity etad aksharam idam sarvam, tasyopavyâkhyânam, bhûtam bhavad bhavishyad iti sarvam aumkâra eva, yac cânyat trikâlatîtam tad apy aumkâra eva. 
(Mandukyopanishad, 1.1) 
AUM, tudo isso (todas as coisas observadas) é essa sílaba. Eis a explicação: tudo o que é passado, presente, futuro, tudo isso é a sílaba AUM. E tudo o mais que está além do três momentos do tempo (trikâla), isso também nada mais é que a sílaba AUM.