Uma das diferenças intransponíveis entre o pensamento cristão, criacionista, e o hindu está no que diz respeito à natureza do tempo e à origem do universo.
Os hindus, em todas as suas escolas de pensamento, e até mesmo entre os nâstikas, chamados não-ortodoxos, entendem que o universo não tem um ponto inicial de criação.
Os filósofos vaisheshika, que se dedicaram mais à cosmologia analítica, explicam que o que tem início no tempo, por assim dizer, são as composições químicas dos átomos do elemento terra (uma vez que essas composições não ocorrem nos elementos água, fogo, ar).
Os filósofos vaisheshika, que se dedicaram mais à cosmologia analítica, explicam que o que tem início no tempo, por assim dizer, são as composições químicas dos átomos do elemento terra (uma vez que essas composições não ocorrem nos elementos água, fogo, ar).
Mas o que isso implica? Basicamente, o universo passa indefinidamente por três fases: srishti, sthiti e laya. É importante manter a compreensão de que essas três fases, desde a perspectiva cosmológica, não anulam o tempo (kâla), nem o espaço (âkâsha), nem posição (dik), nem a chamada inerência (samânya), nem as espécies, gêneros e nomes universais (jâti), nem a individuação (vishesha).
É necessário também analisar os termos em sânscrito, que é língua muito rigorosa na etimologia: em geral traduzem srishti por 'criação', mas é uma tradução ruim. O termo vem da raíz 'srij' que indica em seus significados mais fortes -- emitir, lançar, largar, pronunciar um som. Então, basicamente, ainda usando o modo de explicação dos vaisheshikas, a vontade divina 'emite', digamos, um som, e esse som ou sopro, 'toma corpo' dentro do espaço e do tempo, se mantém, e se dissolve. O segundo verbo, stithi, deriva da raiz 'sthâ', que é a raiz indo-europeia de verbos como stay e estar, ou seja, nessa segunda fase o universo sustenta a si mesmo em seu próprio eixo. A terceira fase, chamada de laya, que deriva da raiz 'lî', indica dissolução, derretimento ou queda (ou seja, perda da posição vertical).
Sem entrar aqui na discussão escolástica entre eternidade e eviternidade, entendamos por eterno aquilo que persiste indefinidamente no tempo. Alguns poderiam ainda perguntar: mas se o universo se dissolve, por que é chamado de eterno (no sentido explicado)? As escrituras apontam que é como o sono, em que o sujeito continua respirando e 'retoma' suas atividades no dia seguinte.
Os vaisheshikas ensinam que durante a dissolução ou 'noite cósmica' os átomos continuam tendo algum tipo de vibração ou agitação que marca o tempo, sem dimensão, e sem se combinarem de forma inteligente (pois o karma não está operante) -- ou seja uma espécie de caos. Da mesma forma o adrishta (destino invisível) também permanece dormente até ser desperto no momento apropriado.
Ao término da dissolução, quando chega o momento oportuno para despertar o dia cósmico, esses átomos se combinam novamente segundo três vetores simultâneos: a vontade divina (providência), o destino ou adrishta e os desejos ou tendências (samskâras) das almas individuais.
Assim, o karma que cria os renascimentos é, cosmologicamente, sem começo e sem fim. E isso pode ser chamado de ciclo do samsâra. Poderia aí também surgir mais uma pergunta -- se o karma é sem começo e sem fim, como é possível a libertação?
O ponto de vista cosmológico, que opera com a constância de categorias de sat (ser, verdade) tais quais os já citados kâla, âkâsha, manas, dik etc., não tem autoridade para deliberar sobre a conjunção inicial entre espírito (âtmâ) e mente (manas), ou seja o 'momento' de penetração do âtmâ no tempo e espaço. E é digno de nota que dentre os perenialistas somente Évola, ao falar sobre o tema do renascimento (abordado em postagens anteriores), mostra consciência mais aguda disso, ao mencionar a 'autodeterminação' do âtma ao entrar no fluxo cósmico.
Para esse ponto de vista cosmológico, a consciência é apenas 'cetana', ela se dá pelo contato entre o espírito (onipresente) e a mente (atômica), e não 'caitanya' (consciência que ilumina a si mesma). Daí que a libertação, para os cosmologistas, acaba sendo uma reabsorção do jivâtmâ no 'sat' (ignorando Cit e Ânanda). Pela compreensão (jñâna) do 'mapa do samsâra', o Âtmâ, realizando e transcendendo as categorias cosmológicas e por oposição cognitiva, é 'perdido de vista' em relação ao cosmos, se libertando dessa esfera. Aqui os cosmologistas têm dificuldade de diferenciar isso de a inconsciência de uma pedra, por exemplo, ainda que entendam que são casos obviamente diferentes. Se seguirem a ortodoxia, 'passam a bola' para outros pontos de vista.
Quando passamos ao ponto de vista cosmológico sintético do samkhya, vemos que aquilo que entre os vaisheshikas é conjunção, passa a ser uma disjunção: o Purusha nunca se conjuga de fato com a Prakrti -- permanece sempre distinto em sua própria inteligência, de maneira que a mente passa a ser não a representação da consciência, mas da inconsciência ou matéria.
Nos pontos de vista superiores, vedânticos ou agâmicos, vamos entender, como explicará os Shiva Sûtras em seu primeiro verso, que 'caitanyamâtmâ' -- a consciência suprema, perfeitamente livre, e que ilumina a si mesma, não é dada pela conjunção entre sentidos, mente e espírito em estado de vigília, mas é a própria natureza última do Si Mesmo.
Seria preciso falar um pouco da natureza do espaço e do som, mas vale dizer aqui que há entre os três estados de manifestação uma analogia patente tanto com o mantra AUM (ainda que o simbolismo não seja esgotado nesse nível) como com os 3 estados de consciência individual (vigília, sonho, sono profundo):
Aum ity etad aksharam idam sarvam, tasyopavyâkhyânam, bhûtam bhavad bhavishyad iti sarvam aumkâra eva, yac cânyat trikâlatîtam tad apy aumkâra eva.
(Mandukyopanishad, 1.1)
AUM, tudo isso (todas as coisas observadas) é essa sílaba. Eis a explicação: tudo o que é passado, presente, futuro, tudo isso é a sílaba AUM. E tudo o mais que está além do três momentos do tempo (trikâla), isso também nada mais é que a sílaba AUM.